| entrevista realizada por Luís Santiago Baptista e Paula Melâneo |

arqa: A exposição “Tanto Mar: Portugueses fora de Portugal”, com curadoria do Ateliermob e patente na Garagem Sul do Centro Cultural de Belém, procura chamar a atenção para os aspectos políticos e sociais da arquitectura, que poderíamos dizer caracterizam a disciplina da arquitectura desde a modernidade e que estão hoje indiscutivelmente na ordem do dia. Como poderemos definir hoje a ideia de “arquitectura social”?

Entusiasmar-nos-ia a todos começar por declarar que o mundo mudou e que a “arquitectura social” representa o eclodir de um fantástico mundo novo. Mas isso não é verdade. Se o mundo tem vindo a mudar não parece ser em prol de uma visão mais humanista e solidária entre povos e a dimensão política e social da arquitectura nunca deixou de existir mesmo naquelas alturas em que parecia bem que os arquitectos se declarassem como apolíticos, trabalhadores da forma e executantes de programas.
O que nos parece particularmente interessante no plano global é a existência de um processo de reacção às práticas de arquitectura muito mediatizadas num passado recente e isso está a fazer com que o discurso sobre a prática seja mais plural e aponte para novos e diferentes caminhos. A produção e emergência de novos conteúdos marginais à oligarquia que se havia constituído aumentou a riqueza da discussão em torno da disciplina.
Por outro lado, revelam-se práticas que, nunca tendo deixado de existir, voltam a ser valorizadas, reabrindo discussões que não podem sair dos nossos estiradores como
a importância e os problemas da participação, o papel social do arquitecto ou o papel da arquitectura em cada uma das fases do processo.
Quanto à definição de “arquitectura social” é uma discussão que gostámos de recuperar mas que não pretendemos encerrar. A meio deste processo de reflexão o Fernando Bagulho enviou-nos um texto (nunca publicado) do sempre ponderado e acutilante Manuel Taínha em que coloca a arquitectura como mediadora “entre as ciências e o mundo da vida”. Olhando para os quase dez anos de prática do ateliermob não há forma de esconder que é nessa definição que nos temos vindo a encaixar.

arqa: A exposição começou por ser sobre “Arquitectos fora de Portugal”, mas acabou por ser apresentada como “Portugueses fora de Portugal”, integrando protagonistas de outros campos de conhecimento e assim afastando-se de uma perspectiva meramente disciplinar. Mas não se cingindo aos arquitectos esta é assumidamente uma exposição sobre arquitectura. Até que ponto e em que sentido estamos aqui a falar do trabalho do arquitecto?

Partimos para esta exposição preocupados em construir um processo de investigação – que só foi possível com o apoio da dgartes - crentes que a exposição seria o resultado das sínteses que conseguíssemos fazer desse processo. Na verdade essa alteração da palavra foi um momento charneira.
Rapidamente conseguimos muitas histórias de vida que nos conduziam para o que poderia vir a ser uma exposição monográfica sobre as pessoas ou sobre a emigração. Mas não era isso que queríamos fazer. Interessava-nos mais os projectos e os processos.
Mais do que uma exposição que chorasse a “mala de cartão” queríamos aprender e expor conteúdos e abordagens em diferentes geografias, escalas e contextos. Sentíamos que este era um momento para juntar, sem olhar a idades ou percursos académicos, mas também para abrir discussões fracturantes que, em Portugal, nos possam retirar dos castelos de certezas sobre a “arquitectura portuguesa” em que nos sentimos mais confortáveis.
Por outro lado, ainda que a exposição esteja pensada para ser itinerante, foi feita com o apoio do Centro Cultural de Belém e para a Garagem Sul. Este facto aumentava a sua carga simbólica ao ser vista pela primeira vez a partir da instituição que está a recuperar o seu papel central e, infelizmente, único na promoção e divulgação da arquitectura em Portugal de uma forma aberta e plural.
O Tanto Mar é, definitivamente, uma exposição de arquitecturas.

arqa: Outra das questões levantadas por “Tanto Mar” é inevitavelmente a recente emigração massiva dos arquitectos portugueses. Como refere: “Não será necessário alongarmo-nos para que se perceba que está em curso uma vaga de emigração sem precedentes, desta feita, protagonizada sobretudo por jovens técnicos qualificados à procura do primeiro emprego”. No entanto, nessa “vaga de emigração” concentram-se nos arquitectos que desenvolvem uma “atitude transformadora a partir das questões sociais”. Como definem e caracterizam essa relação entre a emigração portuguesa e a arquitectura de vertente social? Qual o nexo de causalidade entre ambas?

Sim, esse é um tema inevitável, ainda que o tenhamos propositadamente secundarizando.
Mas há uma constatação curiosa que não podemos ignorar, há uma sub-representação de nascidos entre 1950 e 1974, somente garantida por Rigo – cuja formação não provém da arquitectura – e por Miguel Saraiva como atelier local - no Brasil - de um processo iniciado pelo Estúdio Amatam no Cabuçu de Baixo. Já nas gerações anteriores encontramos Cristina Salvador, Fernando Bagulho e o José Forjaz, por exemplo, que foram actores principais da história do pós-25 de Abril, em Portugal e em Moçambique, respectivamente, e Osório Lobato que realiza a esmagadora maioria da sua vida profissional na Holanda. Por outro lado, os participantes que nascem depois do 25 de Abril não falham uma referência ao SAAL. Não nos parecendo que isto se resolva com uma relação genética parece-nos que há um grande respeito e admiração pelos momentos revolucionários passados em Portugal, o que confere à maioria uma particular predisposição cultural para desejar participar nestes processos.
Por outro lado também nos parece óbvio que a facilidade de comunicação com línguas de largo espectro como o inglês, espanhol ou português abre um enorme campo de acção em territórios da prática em que a comunicação com muitas pessoas é fundamental

arqa: Sendo um tema absolutamente pertinente no actual contexto de crise, a investigação concentra-se na participação portuguesa em contextos internacionais. Porém, pressente-se que essa opção deixa de fora alguns arquitectos e colectivos portugueses com trabalho muito significativo dentro do país. Porque não integraram as intervenções arquitectónicas nacionais no vosso programa? Tendo em conta a continuidade do projecto na plataforma online, estão a pensar vir a fazer essa integração no futuro?

A exclusão territorial foi decidida desde o início e também não integrará a futura base de dados. Mal ou bem, isso é matéria para outros o dizerem, o ateliermob é actor de alguns desses processos no território nacional e por isso não nos consideramos habilitados para o fazer, nem nos parece que fosse desejável. Aliás, esse é um dos desafios que deixamos para quem o queira aceitar.
Por outro lado, depois de ter entrado tarde na cultura arquitectónica em Portugal (por comparação com o que já se discutia pelo mundo fora) e ainda que permaneçam algumas resistências que desdenham parte significativa destas práticas considerando-as fora da arquitectura, a última edição da Trienal de Arquitectura de Lisboa, a representação portuguesa na Bienal de Arquitectura de Veneza e, de uma forma mais modesta, esta exposição criaram condições para se repensar a arquitectura realizada por portugueses fora da prateleira que lhe haviam destinado e que, no contexto actual do país, servia de pouco à generalidade das pessoas.
A plataforma online estará disponível no dia seguinte ao encerramento da exposição – 21 de Julho.
No que diz respeito às possibilidades de itinerâncias da exposição só temos tido propostas do estrangeiro, ainda que seja o nosso desejo expô-la em, pelo menos, mais um local em Portugal.

arqa: A exposição desenvolve-se em volta de “cinco temas”, a saber “emergência, escassez, urbano, informal e formal”, apresentado posicionamentos e atitudes diversificadas por parte dos arquitectos e colectivos participantes. Como chegaram a esta estruturação temática? Existem algumas conclusões que se podem desde já retirar da forma como as diferentes práticas apresentadas se distribuem nesse universo temático?

A estruturação destes cinco grupos partiu das condições a partir do qual é desenvolvido o projecto.
Esta exposição permitiu-nos fazer um diagnóstico, mais do que retirar conclusões. Na verdade parece-nos cada vez mais claro que, depois da exposição, partiremos para a construção de um livro no qual se deverá aumentar o número de projectos e estender a investigação por forma a que nos permita verificar alguns dados para os quais esta exposição aponta e esclarecer algumas questões que foram sendo lançadas.
Por outro lado também nos interessa cruzar as nossas sínteses com as de outros países para perceber a dimensão, os centros, as referências do que se está a passar.

arqa: A exposição apresenta uma perspectiva inter-geracional, não se cingindo às gerações mais novas e à problemática da emigração recente. Por outro lado, apresentam “criadores portugueses” que trabalham em diferentes posições e estádios profissionais, sejam arquitectos chefes, coordenadores de projecto ou colaboradores. Em que medida existe aqui uma crítica à ideia do arquitecto autor?

Provavelmente essas serão as questões que mais incomodam e ameaçam quem quer continuar a viver numa prática entre “colaboradores” e “arquitecto-chefe”.
Indiscutivelmente as práticas profissionais contemporâneas em torno da arquitectura exigem, por um lado, pluridisciplinariedade, por outro, trabalho colectivo. Nesse sentido a ideia do arquitecto-chefe está sob ameaça e todos – profissionais e cidadãos - temos a ganhar com isso. Isto não quer dizer que não haja hierarquias nem que não possa haver uma liderança deste ou daquele processo, mas que os fenómenos de liderança estão mais difusos e são processos naturais e não impostos por quem tem a idade, o capital ou a posição institucional para o fazer. Essa é uma alteração de paradigma que, em Portugal, é particularmente visível no nome que os ateliers vão tomando e que provoca incomodidade a quem se sente ameaçado.
Repare-se que, mesmo em estruturas de organização mais tradicional cujo trabalho é exposto no Tanto Mar, como o Atelier Metropolitano - em que pontifica Jorge Mario Jauregui – ninguém levantou problemas em reconhecer a importância da participação de Nuno André Patrício e da “não-arquitecta” Linda Miriam Cerdeira.
Em boa verdade, assumimo-lo não como uma crítica mas como um dado, produto da nossa experiência e da orgânica dos ateliers com que vamos contactando. Não podemos achar que é muito interessante esta ideia dos novos colectivos e escrever odes à multidisciplinariedade e esperar que se esvazie, sem trazer alterações substanciais nas práticas contemporâneas de fazer arquitectura.

arqa: A exposição revela aspectos curatoriais inovadores na forma como o processo de investigação foi sendo desenvolvido. Desde logo, a exposição é um work in progress, partindo de um open call com o objectivo de convocar o trabalho, muitas vezes desconhecido, que está a ser desenvolvido nesta área por todo o planeta. Por outro lado, a meio do processo realizaram uma série de mesas-redondas em que convidaram várias pessoas a levantar questões e debater a evolução da exposição. Finalmente, editou-se uma brochura com reflexões críticas que expandem o tema da exposição. De que forma foram estes processos de open call e feedback importantes para a exposição?

A construção desta exposição procura aplicar um pouco da prática do ateliermob, mais do que fazer uma reflexão sobre curadoria, e inscreve-se na necessidade que sentimos de estar continuamente a desenvolver trabalho de investigação paralelo que possa complementar a nossa prática e/ou criticá-la.
Neste caso foi fulcral conseguir discutir quatro meses antes da abertura da exposição alguns conceitos inerentes aos trabalhos que íamos recebendo e, sobretudo, fazê-lo com um leque alargado de pessoas que reconhecemos como os que melhor nos podiam ajudar e que, por outro lado, não pensasse necessariamente o mesmo. Aos contributos dos convidados juntou-se os do público e de quem assistiu à cobertura online no site do Diário de Notícias. A partir daí foram chegando ainda mais reacções. Antes das mesas redondas perspectivávamos uma exposição com menos perguntas e mais conclusões, procurando definir conceitos de uma forma tilliana (Jeremy Till). Aquele momento em Dezembro fez-nos perceber que queríamos provocar o debate e que era necessário, sobretudo, trabalharmos na forma de mostrar de uma forma muito rigorosa os conteúdos que tínhamos.
A brochura é um documento promovido pelo CCB para a qual foram convidados três dos participantes nas mesas redondas, o que muito enriqueceu a exposição acrescentando debate, reflexão e crítica às suas temáticas.