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Fotografia Inês D'Orey retirada daqui


A Cerâmica Antiga de Coimbra esteve, até 2003, em risco de demolição. O projecto de reabilitação, da autoria da Luísa Bebiano com Carlos Antunes e Desirée Pedro, do Atelier do Corvo, mereceu recentemente o Prémio Maria Tereza e Vasco Vilalva.
Na entrega do prémio, Luísa Bebiano fez um discurso em que coloca algumas questões disciplinares interessantes pelo que lhe pedimos autorização para o partilhar aqui:


Desde cedo conheci esta pequena unidade fabril, onde chegaram a trabalhar mais de 30 operários. Neste edifício, construído de forma precária, a azáfama era constante e a atividade que o preenchia era tal, que o espaço resultante do seu trabalho intenso era transformado, quase sem se pensar, para dar continuidade às necessidades de todos os dias.
Num dia, os telhados foram levantados para se poder caminhar melhor e armazenar mais peças; no outro, foram abertas janelas para se poder ver com mais clareza; mais tarde, construiu-se um palanque para que quando a água inundasse toda a olaria, não destruísse os documentos escritos. Foram também erguidas paredes de tabique, para que o fumo dos fornos, não atrapalhasse o trabalho da pintura. Os detalhes construtivos foram feitos sem ornamentos, sem o menor pudor estético, sem uma preocupação que não estritamente funcional.
Este edifício durante mais de 200 anos, foi construído de retalhos, de acrescentos, com as mãos de todas as pessoas que aqui habitavam e faziam o ofício da arte cerâmica. Os anos passaram e o abandono ao lugar foi gradual. Após algumas tentativas de demolição por parte da autarquia, em 2007 eram poucos os habitantes da fábrica. E os que aqui estavam, novos e antigos, foram-se habituando à préexistência em decadência. Além do trabalho diário, o trabalho de manutenção do espaço era obrigatório. Todos os dias era preciso equilibrar o edifício: retirar o excesso de água, remendar a cobertura, trocar uma porta, devolver o vidro ao caixilho. Era assim mesmo: um trabalho precário, coletivo, sem preocupações de retorno financeiro, sem preocupações estéticas, apenas com o objetivo de realização, em que a globalização imposta e a vida, ainda nos permitisse continuar um ofício em decadência.
Todos os dias que aqui entrava, sentia este espaço diferente. E sem querer, aos poucos, tornou-se um lugar de afeto. Passei nesta fábrica, horas a olhar. Horas a pensar. Iniciei um processo de conhecimento, só a ver, e encontrei um lugar carregado de memórias e emoções, onde a luz entrava de uma forma cenográfica, a volumetria das chaminés rasgava a cobertura e o ruído das madeiras, mesmo centenárias, ainda se fazia sentir. Não tenho dúvidas que a vida deste lugar reside na sua imaterialidade, no seu carácter único e especial. Foi na altura de desenho que percebi que a intervenção já estava escrita nas camadas de memória. E a arquitetura pode ser isto: a consolidação da pré-existência, saber valorizar e depurar, demolir e reconstruir, com base numa demorada leitura.
Pediam-me ontem, que tivesse a capacidade de olhar para este processo, apenas com a clareza de um projetista técnico. Isso é completamente impossível. Porque falar sobre este processo, decidir sobre este edifício, tornou-se mais difícil do que decidir sobre mim. Porque é possível haver uma relação de amor por um espaço. E alterar o espaço, é alterar a nossa relação com ele. E essa relação pode ser de tal forma poética e forte, que o que interessa, não é meramente a arquitetura, mas a sua essência: a memória e a atividade continuada, a apropriação e a transformação de vidas, atividades e saberes. F
oi com este projeto, longo e sem fim, que aprendi que o trabalho do arquiteto se insere sempre num contexto cultural e de comunicação. Por isso, não consegui, ao longo deste processo, deixar de ser em simultâneo, arquiteta e arqueóloga, irmã e antropóloga, assistente de obra e conselheira, querendo catalogar tudo, recolocar tudo, conhecer tudo, como se de uma verdade absoluta estivesse a descobrir e a querer mostrar a todos os que aqui entrassem, um tesouro que parecia estar escondido. A relação com este lugar transformou-me. Na escola tinha aprendido a ser racional, a seguir um processo de projeto, ninguém me tinha ensinado a olhar. Aqui aprendi a ser intuitiva, a saber procurar, a saber ver. E arquitetura é isto. É ouvir e mais tarde, saber transmitir. O arquiteto não é aquele que constrói edifícios. O arquiteto é aquele que sabe ouvir as pessoas e os sítios. E a nossa melhor tarefa, enquanto projetistas, é descobrir, muito mais do que a forma, a essência e o espírito que encerra todos os lugares. É preciso conviver com vários estados do tempo, fazer conviver o tempo sobre os materiais e tornar a arquitetura uma coisa emocionante, para que ela possa transformar vidas e vivências.
Conheço este espaço e tudo o que ele inclui desde que nasci. Vivi diariamente com os seus dramas, inevitabilidades, sucessos e fracassos. Umas vezes longe, outras mais de perto. Este projeto começou há 16 anos. O Atelier do Corvo iniciou-o, com toda a sua generosidade e criatividade, apenas com a promessa de ficar ligado ao seu desenvolvimento, sem pedir nada em troca. Eu integrei-o em 2008, como recémformada, e desde essa data, não acredito que tenha um dia para terminar. Porque se eu quero continuar ligada a este lugar e a escutá-lo diariamente, ele para mim, estará sempre em suspenso, com carácter indefinido e inacabado.
Hoje, não poderia ser o dia mais especial, em que posso dizer (sem querer retirar as palavras do meu irmão, verdadeiro lutador e corredor de fundo para que o que aqui está construído e preservado fosse possível): obrigada a todos os que fizeram isto acontecer, obrigada a todos os que foram acreditando.
Obrigada à Fundação Calouste Gulbenkian, ao Prémio Vilalva e ao Júri, por nos ter proporcionado este momento e este reconhecimento de que a arte, a cultura, a arquitetura e a vida, são coisas ligadas entre si, e a nossa verdadeira essência.
Muito obrigada a todos por estarem aqui.


Coimbra, 2 de Julho de 2019
Luisa Bebiano