Hoje, no Expresso, a Carta Aberta que dirigimos à Presidente da Câmara Municipal de Almada sobre o Bairro das Terras da Costa depois de dois anos a tentar chegar à fala com o município e sem percebermos, nós e moradores, quais são as suas intenções para aquele território.

Carta Aberta à Sra. Presidente da Câmara Municipal de Almada,

Exma. Sra. Presidente,
Somos uma plataforma de técnicos – arquitectos, urbanistas e cientistas sociais - que tem vindo a trabalhar desde 2012 no Bairro das Terras da Costa. Este é um bairro informal no qual habitavam perto de 300 pessoas, sem água e sem luz, com casas em condições indignas. A sua população é caracterizável pela sua juventude. Cerca de 45% tem idade inferior a 18 anos.

Ao longo destes anos conseguiu-se contrariar a invisibilidade deste bairro. Com o apoio do município e da Fundação Calouste Gulbenkian foi construída uma Cozinha Comunitária (que foi considerada uma boa prática por diversas organizações nacionais e internacionais e o Prémio Archdaily de Edifício Público do Ano de 2016). A Cozinha permitiu criar pontos de água no centro do bairro, anteriormente a 1 km, e trouxe uma nova esperança às pessoas que habitam o bairro. Em 2014 era tido como um caso de sucesso de desenvolvimento de trabalho comunitário em todo o país em que comunidades ciganas, africanas e afro-descendentes se organizavam numa única comissão de bairro e eram tidas e ouvidas em tudo o que dizia respeito ao seu bairro. Também em 2014, o município anunciou o início de um processo de realojamento a ser realizado de uma forma participada e articulado entre a autarquia, os moradores e com o nosso apoio técnico. Até 2016 conseguiu-se realizar um trabalho continuado, em várias vertentes, que até permitiu que uma parte do bairro fosse demolido de uma forma tranquila e as famílias temporariamente dispersas, tendo-lhes sido garantido que continuariam a participar no processo e assegurado o seu regresso à Costa da Caparica para o novo bairro a ser construído. Com aprovação de todas as forças políticas, a Assembleia Municipal de Almada entendeu efectuar uma saudação pública ao trabalho desenvolvido, publicado no Edital 496/XI-3.º/2015/2016 de 26 de fevereiro de 2016, nos seguintes termos:

1. Saudar o ateliermob e o Colectivo Warehouse pelo reconhecimento do projeto ‘Cozinha Comunitária das Terras da Costa’ e pela atribuição do prémio de Edifício do Ano de 2016 na categoria ‘Public Architecture’ pela plataforma ArchDaily.

2. Saudar a Associação de Moradores das Terras da Costa e, por seu intermédio, todos os moradores do Bairro das Terras da Costa, pelo trabalho, luta e intervenção permanentes por melhores condições de vida.

3. Saudar a Câmara Municipal de Almada pelo apoio à construção da Cozinha Comunitária das Terras da Costa, pela intervenção e diligências realizadas para a sua concretização, e pela resposta a algumas das necessidades mais prementes da população residente.

4. Manifestar o apoio à Câmara Municipal de Almada na concretização de um processo de realojamento construído com os moradores, passível de assegurar aos mesmos, na Costa da Caparica, uma habitação digna e de qualidade, por intermédio de um processo que aponte a uma melhoria da situação social e económica da população residente no Bairro das Terras da Costa.

Nos primeiros anos deste processo sempre se sentiu um profundo desinteresse do governo e do IHRU em participar nesta operação. A nomeação da Arq. Ana Pinho para a Secretária de Estado da Habitação e a publicação da Nova Geração de Políticas de Habitação, criou as condições para que também o Estado central pudesse participar neste processo e esta comunidade tinha todas as condições para ser um exemplo referencial de boa implementação do programa 1º Direito.

Contemporaneamente, em 2017, um grupo de técnicas com o apoio da CMA e da então constituída Associação de Moradores, conseguiu formalizar um contrato entre a EDP e a Associação que permitiu a chegada de electricidade a todas as casas do bairro. A única forma de contratualização admitida pela EDP era a de um contrato de obras, a ser renovado anualmente, mas com custos elevadíssimos o que faz com que as casas das Terras da Costa paguem a energia mais cara do país - ainda que a maioria dos agregados tenha direito à tarifa social. Mais, o pagamento da conta deve ser feita de forma conjunta, estando cada família cumpridora dependente de que todos os moradores paguem a sua conta em tempo útil. Como imaginará, seja nas Terras da Costa seja num condomínio na Quinta da Marinha, este sistema cria um ambiente de desconfiança terrível entre vizinhos sendo insustentável a médio prazo.

Depois de estar garantido o seu acesso à electricidade, dirigimo-nos à Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação no sentido de ser legislada a obrigação da EDP poder fornecer energia individual a cada uma das casas em bairros deste tipo. Iniciativa do qual resultou a Resolução da Assembleia da República n.º 151/2017, de 17 de Julho, que recomendou ao Governo a adoção de medidas para assegurar o acesso dos habitantes de bairros ou núcleos de habitações precárias a serviços e bens essenciais, em particular aquelas que permitam assegurar a prestação do serviço público eletricidade e o DL n.º 36/2018 de 22 de Maio que aprova um regime extraordinário relativo ao abastecimento provisório de energia elétrica a fogos integrados em núcleos de habitações precárias. Um ano passado, é-nos difícil entender porque é que a CMA se demitiu de orientar este processo.

Esta comunicação assume o carácter de uma carta aberta pois desde que este executivo foi eleito, e apesar de termos tentado vários contactos com a Sra. Presidente e a Sra. Vereadora com o pelouro, ainda não conseguiram encontrar tempo para nos receber e, pelo menos, tomar conhecimento do trabalho que já foi realizado no que diz respeito ao realojamento.
Esta comunicação assume particular urgência porque a última informação verbalizada pelo novo director municipal foi a de que já existiria uma solução de dispersão daquelas famílias pelas várias habitações municipais e que estaria expressa na Estratégia Local de Habitação entregue ao IHRU. Ora este procedimento vai totalmente contra os princípios estabelecidos para a elaboração das ELH, no qual a participação é fundamental. Nessa medida, nem os moradores nem os actores locais em que nos colocamos, foram, sequer chamados a conhecer o que a CMA decidiu para as pessoas.

Ainda que reconheçamos todo o direito da CMA em ter uma abordagem diferente na sua relação com bairros como o das Terras da Costa não podemos deixar de lamentar que em nenhum momento se tenha preocupado em ouvir os moradores e quem lá trabalha, continuadamente, há sete anos.

Manifestamo-lo hoje, pela primeira vez e de uma forma pública depois de o termos tentados por diversas formas fazer chegar ao município, esperando sinceramente que esta carta motive um reequacionar dos procedimentos com que está a ser elaborada a ELH e na forma como o município se está a relacionar com os moradores e actores do território.

Ateliermob
Colectivo Warehouse