É possível mudar um bairro clandestino

Como nasce um bairro? Uma casa, uma família, um coletivo com uma identidade identificável num conjunto urbano mais ou menos complexo, maior ou menor em extensão? A pergunta não tem uma resposta simples. Como é que um aglomerado, clandestino, composto de uma população com origens diversas - cigana, cabo-verdiana, angolana, moçambicana, guineense, brasileira - se organiza em torno de um objetivo: a melhoria de condições de habitabilidade e de um espaço de partilha? Quando conheceu o bairro Terras da Costa, em 2012, Tiago Mota Saraiva encontrou uma população unida, capaz de se associar em torno desse propósito. Não era a primeira vez que trabalhava com bairros de constituição "frágil". "Ali, havia problemas muito básicos por resolver. Aquelas pessoas não tinham água, eletricidade, um espaço onde se reunir", conta sobre o que seria a intervenção do Ateliermorb, um gabinete de arquitetura onde trabalha, e do coletivo experimental Projeto Warehouse num bairro clandestino que pedia para não ser esquecido.

"De um modo muito concreto, começámos a tentar perceber o que poderia ser o papel de um arquiteto. Levar água a uma população não é propriamente uma ideia de arquitetura. Mas desenhámos um projeto, tentando sensibilizar a autarquia de Almada. Passava pela construção de uma cozinha coletiva, um espaço que servisse aquela população não apenas como um ponto de água canalizada, mas enquanto lugar de encontro capaz de reunir algumas funções básicas", continua Tiago Mota Saraiva, referindo-se a um núcleo com alguma complexidade, uma centralidade: um espaço onde preparar refeições, com tanques de lavar roupa, duches, casas de banho e sede para a associação de moradores que se estava a constituir.

Seria preciso reunir esforços à volta de um bairro de origem clandestina, impossível de legalizar por se situar na Reserva Agrícola Nacional, em terrenos de uma área protegida, entre o mar e a Arriba Fóssil da Costa da Caparica. Como convencer futuros parceiros, financiadores, acerca da necessidade de uma população flutuante num bairro temporário, mas que existe? "O que se passou pode ser considerado um exemplo, um questionar da lei e das prioridades que devem ser consideradas básicas. Sim, há ali uma ilegalidade, mas há ali uma população e não se pode fechar os olhos à questão humana", continua Tiago acerca de um trabalho que diz ter sido desenvolvido como se a associação de moradores das Terras da Costa fossem um cliente. "Era preciso ?30 mil euros", sintetiza, "e reunir boas vontades". Foi essa a tarefa enquanto o projeto era desenhado. Uma estrutura em madeira, nuclear, e vários pontos de água espalhados pelo bairro.

As ajudas vieram depois de desbloqueados os dois principais parceiros. Além da Câmara Municipal de Almada, o grande apoio financeiro veio da Fundação Calouste Gulbenkian. No verão passado, a cozinha foi construída com ajuda de jovens voluntários que vieram de vários países da Europa e a água chegou aos cerca de 500 habitantes, cem dos quais são crianças, que a população vizinha olha com alguma desconfiança. Depois de satisfeitas necessidades básicas é aí que estão agora centradas as atenções. "As pessoas do bairro sentiram-se visíveis depois disto. Apareceram nos jornais, os seus pedidos foram atendidos. É um passo muito importante. Como continuar a integração? "Neste momento estamos a candidatar o bairro a programas na área das ciências sociais e na organização formal de uma associação de moradores e poder, passo a passo, combater um afastamento de anos." Tantos quantos os da existência do bairro. "Sobre essa génese ninguém avança com uma data precisa. Já passou por várias fases, a população muda, mas o aglomerado persiste."